Esquizoanálise, uma subversão psicanalítica.

Não vou dizer que o que faço não é psicanálise, pois trabalho com o inconsciente. A questão é que em algum momento me perguntei sobre como analisar pessoas que não nasceram em famílias burguesas, mas na classe trabalhadora? Pessoas que enfrentam não o governo de um pai severo e castrador, mas o de um Estado política e socialmente estruturado pelo racismo, pelo machismo, pela fobia contra pessoas LGBTQIA+. Inconsciente este que não está relativo à castração e ao complexo de Édipo, mas à inacessibilidade a determinados espaços de poder, subjetivado por fantasias de democracia racial, de um regime democrático que nunca se colocou de fato. Inconsciente antiedipiano. Enquanto alguns brasileiros sonham com a família tradicional nuclear, o que nunca será, uma corja de safados sai às ruas para pedir intervenção militar. Nesse mesmo território onde a maioria da população se organiza há mais de 130 anos em comunidades e conta com esse campo solidário para existir e resistir.

Para a esquizoanálise, interessa os mecanismos de defesa de uma realidade social em que a família nuclear não é regra, mas exceção aos brasileiras e brasileiros. Encabeçadas, muitas vezes, apenas por mulheres, muitas delas mulheres negras. Encabeçadas por pessoas LGBTQIA+, entre outras que não cabem nessa sigla, muitas delas negras. Por pessoas que trabalham o dia inteiro e que deixam seus filhos na creche, na casa da vizinha, com algum parente… Nesse sentido, a psicanálise tradicional do homem branco europeu, comprada a peso de ouro (pois a formação em psicanálise é uma fortuna), não só deixa muito a desejar, como passa longe da realidade de muita gente. Digo isso por experiência própria, não apenas enquanto psicóloga, mas também como alguém que já esteve sendo “analisada” por pessoas brancas que não conseguiam ter empatia pelas minhas complexidades psicológicas. Sequer conseguiam manter uma escuta ativa e participante, muitas vezes impondo suas visões burguesas de mundo.

Estou falando da necessidade da pluralidade no campo da análise do inconsciente. Nossos pacientes são mulheres, homens, cisgênero, transgênero, negras, negros, brancas, brancos, indígenas, senegaleses, haitianos, guineenses, etc. O Brasil nunca coube em suas fronteiras, desde o momento em que foi barbaramente colonizado por europeus. Aqui estamos trabalhando com um inconsciente fabricado pela diversidade multiétnica em que as situações não cabem em um mito eurocêntrico. Aliás, esse negócio de mito é para quem mantém sua percepção ser ditada pelo fanatismo, o que nos deixa, enquanto população, à mercê de um presidente genocida.

O inconsciente que estamos fazendo falar provém de famílias em que muitas mulheres estiveram e estão sozinhas na criação de filhos e muitas vezes foram “duras”, proibicionistas; de muitos homens que enquanto pais estiveram e estão submetidos a um sistema que obriga a abusar da bebida e outras drogas, que não permite acessar essa tão idealizada identidade paterna, fábrica de abandônicos, de pais que batem nas companheiras, nos filhos. É sobre um insconciente produzido a partir de relações institucionais violentíssimas, como a escolarização, o encarceramento em massa de pessoas pretas e pardas, especialmente do sexo masculino; a precarização da saúde pública e da política de assistência social. Mas estamos fazendo falar um inconsciente que também não é forjado na/pela violência e pela dor, mas por estratégias. Estamos fazendo falar famílias inteiras onde habitam mães, pais, tios, tias, primas, primos, avós, avôs, pessoas sem nenhum grau de parentesco consanguíneo, que ofereceram e oferecem muito amor, não aquele amor romantizado e hierarquizado nas novelas da Globo! Um amor batalhador, que transmitiu e transmite vontade de estudar, de mudar de vida, de ter orgulho, de ser respeitade, de querer e ofertar acolhimento, onde sistemas fechados não operam. Operam sistemas abertos, de flexibilização das responsabilidades e do cuidado.

Esse não é um inconsciente para consultórios de pequenos-burgueses. E se alguns psicanalistas acreditam que essas pessoas não estão aptas para serem analisadas é porque tem um problema individual, que se expressa em um coletivo que não tem lugar para construir uma fala de si. Desse modo, enquanto psicóloga negra, sempre me apresento como esquizoanalista. Não porque estou abrindo mão da psicanálise, nem porque estou também submetida a uma clínica que parece estar centrada em autores europeus e brancos fanfarrões. A esquizoanálise para mim é um caminho devido ao fato de que quando iniciei minha clínica, encontrei pessoas que esperavam ser escutadas por uma psicóloga negra, que queriam ressignificar suas histórias sem medo de sofrer algum tipo de preconceito, sem sair do consultório mais quebradas do que chegaram por que estavam sendo rotuladas por uma psicanálise cheia de barreiras disfarçadas de intervenção. É necessário que estejamos atentes à realidade social em que vivemos e que dentro de qualquer espaço particular podem se reproduzir muitas violências similares a violências sofridas em guerras declaradas. Quando Frantz Fanon analisou pessoas que viviam a guerra da Argélia, ele denunciou que o sofrimento era não uma produção de fantasias parentais, de papai e mamãe. As pessoas sofriam de memórias de acontecimentos reais de tortura física e psicológica. E as pessoas queriam falar de política, mesmo quando não estavam plenamente conscientes disso.

Cabe à ou ao analista entender que quando alguém reivindica falar de si, é a partir sempre de um contexto de experiências que não podem ser reduzidas a leituras únicas. Eu enquanto esquizoanalista articulo feminismo, racialização, governabilidade, arte. Estou aprendendo a não ser passiva e a não cair na fantasia de normalização, porque a formação acadêmica me deu limitações, mas também possibilidades. Entendo que quem traz seu inconsciente para análise está trabalhando tanto quanto eu. Estamos trabalhando juntes e não existe hierarquia aqui, a não ser aquela que precisa ser derrubada.

Publicado por

Letícia Campos

Feminista negra, psicóloga e esquizoanalista. Este blog é destinado a escrita de coisas aleatórias. Aqui tem erros, atos falhos, acertos, assertividades e muito processo de territorialização, desterritorialização e reterritorialização.

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